quinta-feira, 21 de maio de 2009

Muito de Mim – Parte III


Muito de Mim – Parte III

Esta história, tento abreviar, sem que fiquem para trás alguns de seus detalhes marcantes.
Agora que a perda do avião já foi explicada, vou mais à vontade falar dos fatos daqueles poucos, mas abençoados dias que tive meu pai comigo.
Ele não chegava para as encomendas, todos queriam um papo com ele. Ainda bem que falar era o seu forte. Passavam os dias e as horas e estava sempre alguém a sua volta, a ouvir, a perguntar, ou a recordar com ele alguns fatos, a final vivíamos agora uma vida de verdade, nela não cabia mais a ficção.

Esta foto foi tirada em Vila Velha - Vitória, onde passamos as férias com ele. Ali tivemos muito tempo para conversar, lembrando, recordando, discutindo. Só pensava em política,em reformas, dizia que o mundo ainda ia ver como seria duro quando os árabes do petrólio resolvessem dar as cartas.

Ele, um homem alegre, fazia sempre parecer que estávamos em festa quando estávamos todos juntos. Tinha muito o que contar, o que sugerir, o que criticar, ele era fogo!
Do Brasil, observei, guardou sempre lembranças muito boas, gostava muito daqui.
Em contra partida, sua vida pelo mundo, deve ter sido muito difícil, pois foi na maior parte do tempo, um fugitivo de sistemas que impunham o silencio que a duras penas era mantido.
Onde atualmente morava, tinha um Hotel, um restaurante e uma lanchonete que formavam um conjunto comercial único no país. Não pode comprar nada, mas conseguiu uma concessão para explorar o seu comércio ali, por noventa anos.
Enfrentou costumes completamente estranhos, o que não o impediu de, a seu modo, informar e influenciar algumas cabecinhas.
Lá, além do isolamento, bem menos de 2% de brancos compunham a população e por certo, sempre oriundos da nossa civilização ocidental.
Os nativos não se aproximavam com facilidade, havia muitos obstáculos para que confiassem em alguém de fora. Mas, meu pai, mestre em comunicação (formado por seu DNA e sua ideologia), fez-se amigo de toda gente.
Socorria a todos em qualquer circunstancia, e com o tempo tornou-se uma pessoa querida. O tratavam pelo apelido de “Old Man”, porque a bem da verdade, nunca seu nome verdadeiro foi conhecido naquele país, onde as suas correspondências tinham que ir destinadas, apenas a “José Carlos”.
Ele não gostava de revelar muita coisa sobre o povo, nem sobre os costumes com os quais agora precisava conviver. Tinha receio e se o assunto viesse à tona na rua, falava baixinho com medo de ser ouvido. O país era e deve ser ainda, diferente de todos os outros do mundo. Preservando sua vida, se adaptou tão bem ali, que se tornou amigo íntimo do rei.
O regime de governo era o reinado e pelo que sei, conseguido sempre à força.

Sabendo o rei algumas coisas interessantes sobre aquele estrangeiro e do seu convívio pacífico e dedicado para com seus súditos, quis conhecê-lo. Ficaram grandes amigos. Foi tanta a confiança do rei na pessoa dele, que enquanto meu pai esteve por lá, era chamado ao palácio, para ajudar o rei em todas as situações que envolviam qualquer questão diplomática. Do mesmo modo, como quando se relacionavam com a Cruz Vermelha e nessas emergências, vinha um carro oficial apanhá-lo no hotel.

Documentos oficiais escritos para serem enviados a outros países eram todos elaborados sob sua orientação. Não tive a felicidade de ver nenhum deles, mas ouvia o que Old Men contava.
O país, só produzia bananas e cola que exportavam.
O resto, ou seja, tudo, importado principalmente da Inglaterra.

Quando ele chegou aqui, trazia uma bagagem de décadas de saudade, inclusive da comida.
Ficou enlouquecido quando me viu na pia da cozinha, preparando um belo maço de brócolis que acabava de me ser entregue junto com outras compras.
- Filha! Vamos comer esses brócolis agora no jantar?!
Respondi que não, que a janta estava quase pronta e os brócolis eram uma verdura demorada para ser limpa.

Naquela época as verduras não eram envenenadas com pesticidas como as que comemos hoje e vinham cheias de bichinhos, vivos ainda!


Expliquei a ele que ficaria mergulhada em água e vinagre para matá-los e só depois, muito bem lavada para ser cozida. No dia seguinte, então, teríamos brócolis para o almoço.

Pra que?... Ficou bravo, aborrecido e disse que ao ver aquela verdura que nunca mais vira, sua boca já salivava e eu, queria fazê-lo esperar até amanhã, só por causa dos bichinhos?
Claro! Respondi.
Ele inconformado decretou: nada disso, os brócolis vão para a panela e os comemos no jantar. Vocês aqui são muito engraçados só comem bichos grandes! Porque esse preconceito contra os pequenos?

Morri de rir, fiquei com tanta pena dele, parecia uma criança aguada! Fiz uma enorme ginástica, atrasei o jantar, mas os brócolis e talvez os bichinhos foram para a mesa e ele os comeu como se fosse a melhor iguaria do mundo. Feliz comigo que o havia entendido. Eu, feliz também, mas como aqui em casa todos gostam muito de brócolis, mantive-me na moita, sem contar nada do que havia se passado na cozinha. Esse diálogo só ficou conhecido uns dois ou três dias depois. Durante o jantar minha atenção estava toda voltada para as expressões e movimentos de cada um, porque a qualquer momento eu esperava que alguém desse um grito de alerta, para denunciar a presença terrível de um bichinho na verdura.

Não aconteceu, felizmente.

Ele entendia tudo de cozinha, certamente por ser dono de restaurante e sempre ter sido essa sua atividade.
Aqui, ficava maravilhado com tudo, com a fartura, tanto o que comer e tanta a beleza!
Sua maior alegria era convidar os netos, os maiores para irem com ele ao “super marquet”, como dizia com sua pronuncia dura de inglês, o que aprendera lá, na Monróvia. Já falava o espanhol, aprendido na Espanha desde quando fugira de Portugal. Morou em Argel, onde aprendeu o Frances e o seu português, foi ficando prejudicado. No super, comprava muito, trazia coisas, como por exemplo, uma perna de cabrito já assada. Naquele tempo, não tínhamos esse costume de comprar no super mercado, ou mesmo no mercado Central, a comida já pronta. Ele comia de tudo, e bem! Cada vez que íamos para a mesa era o momento da conferencia do cardápio do dia, que servia também para ele recordar nomes que já havia esquecido. Tudo era bom! Ver, comer, lembrar do nome do alimento e até de algum caso relacionado a ele que lhe voltava à memória.

Que bom era tê-lo ali, em carne e osso!
E eu que sempre senti o quanto era diferente das outras meninas que tinham pai, naqueles dias, estava realizada! Sentia-me às vezes, até como uma menina.
Qual é o lugar de seu pai a mesa?
Aonde ele vai se sentar?
Que susto eu levava!
Estavam falando comigo, sobre meu pai, presente ali!

Na realidade, sua vinda e sua chegada, não foram assim tão simples.
Entre nós, sempre houve uma grande distancia física, mas agora, chegara a hora de um convívio real, chegara a hora do nosso reencontro.

A cada dia, a cada momento, uma surpresa para mim.

Esse “cara” tinha uma imaginação fértil e uma inteligência diferenciada.

Ao chegar seu telegrama, aos 29 de junho de 1973 iniciamos um relacionamento via correio.
Nunca falamos ao telefone.
Nossa correspondência se inicia desde quando lhe mandei a primeira carta.
Agora, esperava com uma enorme angustia que ele me desse uma notícia qualquer, sobre sua vinda ao Brasil, conforme combinamos.

Já era 22 de dezembro e nada...

Saí na parte da tarde, para ultimar os preparativos do Natal, que ele acenara de longe com uma pequena possibilidade de passar conosco.
Não vinha uma carta com orientação, minha tia não telefonava, ninguém dentre nós todos para quem ele escrevia, havia recebido nenhuma boa dica sequer. Silencio total.
Eu dizia, vou fazer isto, ou aquilo, antecipadamente, porque acho que meu pai vem passar o Natal com a gente.
Interjeições de uns e outros, sorrisos que disfarçavam a dúvida daquela vinda tão esperada por mim e por todos.
Mas eu, aquela otimista de sempre e confiando nas palavras que vinham dele, concluía que deveria sim, ter chegado uma, ou mais cartas, se ele não viesse.

Seu silencio me dizia “sim eu vou, estou chegando”.
A turma de casa me deixava em dúvida. Tinham receio de que eu tivesse uma grande decepção caso ele não pudesse vir. Se isso ocorresse, o Natal seria muito triste.

Com essa minha saída na tarde do dia 22, restava só para o dia 23, cumprimentar pessoalmente duas tias, como eu fazia todos os anos. Eu mal me aguentava fora de casa, porque queria estar ali na hora que chegasse uma notícia.

Quando sai nessa tarde, deixei em casa só o Rico, meu caçula temporão e a Ana Paula, minha afilhada, com as duas moças que trabalhavam comigo. Recomendei um bom comportamento e pedi que atendessem ao telefone com responsabilidade.

Na volta, os dois vieram correndo para me dar um recado recebido exatamente por telefone: um rapaz que disse trabalhar no correio queria falar comigo, mas como eu não estava, deixou com eles um importante recado que não poderia deixar de ser dado. Explicou a eles que por ser Natal, o trabalho nos Correios era muito, mas havia um telegrama para mim que não teriam tempo de entregar. Ele ia lê-lo para que eles anotassem e me transmitissem o que dizia e depois, se houvesse possibilidade, ainda me seria entregue.
O recado era simplesmente assim: estou chegando para o Natal e vou brincar muito com o Rico, mas sem correrias.

Esse telefonema deu pano pra mangas, todos temiam que alguém estivesse me dando um trote, fazendo uma brincadeira de mau gosto comigo. Parei, li o recado mais de uma vez e disse de imediato: foi do papai sim, o recado. Não tenho a menor dúvida, ele está chegando. Agora é só aguardar.
- Mas por que, de repente, tanta certeza? Todos queriam saber. Fácil, expliquei. Ele diz aí o que me disse em uma carta, que “brincaria com Rico”. Usou, sem combinarmos nada, um código perfeito, porque era estranha a forma como me avisava, mas era verdadeiro o conteúdo do recado.
Este o recorte da carta, datada de 12/11/1973, de onde ele tirou a senha que precisava para validar o seu recado.

Telefono para as tias e aviso que vou amanhã logo cedo abraçá-las e desejar-lhes um bom Natal. Amanhã às 8 horas saio daqui, porque depois faço plantão para esperá-lo.

No dia 23, como me propus, saí cedo e fui primeiro na casa da tia Lydia, que ficava ali na Iguatemi, antes de ser Avenida Faria Lima. Estava lá há uns dez minutos só, quando o telefone tocou. Era meu marido dizendo: - Aidinha volta logo que seu pai telefonou e está nos esperando no aeroporto de Congonhas. Vamos buscá-lo.

Fiquei louca! Mal me despedi de todos e saí. Essa minha volta para casa, deveria ter sido filmada! Assustei muita gente pelo caminho. Hoje me assusta pensar quanta coisa ruim poderia ter acontecido naqueles minutos em que eu estava “solta” pelas ruas. Peguei a Marginal Pinheiros e em alta velocidade, sai voando e ziguezagueando entre os carros. As janelas abertas, mãos sem segurar todo o tempo o volante, eu fazia gestos pra que se afastassem e gritava:

- Sai da frente que meu pai chegou!

Ria, chorava, o rosto banhado em lágrimas que as mangas da blusa enxugaram antes de chegar a casa. Parei junto ao meio fio na frente do portão, porque íamos sair imediatamente. Brecada brusca, puxado o breque de mão com a força que eu tinha, deixei o carro ligado e entrei correndo pela porta da sala que estava aberta. Mal passo a sua soleira, meu pai que estava nela encostado, agarrou me pelos cabelos, firmemente, e apertou-me contra o seu peito. Disse: - calma filha, pra que tanta pressa, já estou aqui. Abraçados, não trocamos nenhuma palavra.

Depois olhei para ele, ainda não o tinha visto, o coração quase saia pela boca!

Era ele mesmo.

Olhei depois para todos que nos olhavam com a emoção própria do momento e não era pouca, para conferir e ver se não faltava ninguém, porque quando saí, deixei todo mundo dormindo, mas queria que todos estivessem ali naquele momento.

Havia um a mais. Era meu sobrinho, o Glauco, filho do meu irmão mais velho. Esse seu filho, José, nasceu antes dos 18 anos do meu pai. Meu sobrinho morava no Rio e meu pai que tinha o endereço dele, chegou sem avisar ninguém mesmo, tomou um taxi e foi para a casa dele onde se encontraram. Foi de lá que veio o tal telefonema “dos correios”, que o Glauco fez sob a orientação do avô e eu entendi tão bem. Passaram o dia 22 juntos, pondo em dia toda uma vida.

Foi ali na porta da sala, na entrada da minha casa o nosso encontro e o nosso abraço, como se ontem estivéssemos estado juntos. Foi como ele queria que fosse e já tinha me explicado nas cartas que a emoção seria muita se não nos cuidássemos, tinha medo que seu coração não agüentasse.

Ele preparou tudo.

Assim mesmo, tomei um choque. Paralisei. Daquele momento em diante, só ouvi, não disse mais nada. Eu queria vê-lo, senti-lo, adivinhar seu coração. O homem, para mim era o mesmo que eu vira aos seis, ou sete anos de idade, quando foi embora. Naquele dia eu o reconheceria entre milhares de outros! Era meu pai!
Que sentimento mais estranho tomava conta de mim. Sentimento que até hoje busco interpretar, porque eu não queria só o que ele imaginava, queria muito mais.
Queria o pai para mim.
Queria compensar tantos anos de ausência, matar uma saudade dolorida, perguntar tanta coisa.

Já mencionei como foi feita a minha cabeça contra ele.
Ouvira casos contados, cujo final levavam sempre meu pai de roldão e ele era sempre o bandido, nunca foi o mocinho. Nem uma única vez. Por essa razão eu tinha a sensação de ser filha de um homem sem alma, nem coração, o que sempre me incomodou muito.

Pensava: se for verdade, vou ter muita tristeza, mas é esse o pai que tenho. Estava preparada. Porém se for mentira, como ficarei feliz e não será feita mais nenhuma injustiça contra ele!
Dentro desse propósito, avisei todos os parentes, tios, primos e amigos do tempo dele, que viessem, porque ele estava em minha casa.

As pessoas mal acreditavam e vieram todos visitá-lo.

Foram dias de recordar e foram dias de passar a limpo histórias mal contadas, porque eu procurava sempre introduzir aquele fato que havia me impressionado e que tinha sido passado entre meu pai e o visitante do momento.
Que bom, lembravam de tudo e eu pedia ao papai que ele mesmo contasse como foi tal fato. Pois é, ele contava tudo diferente e eu pedia o aval do mentiroso ali presente, com uma simples pergunta. Foi assim fulano, ou fulana, você se lembra tão bem como ele? Todas as respostas que eu buscava, na acareação que fazia sem que ninguém suspeitasse, foram a favor de meu pai e eu ali compreendi que tinha ouvido muitas mentiras contra ele pela vida a fora, com o propósito de me afastarem dele definitivamente. Não sei o que temiam. Sei que consegui ter meu pai de volta e consegui resgatar de dentro de mim o homem bom que ele era. Agora, para mim, livre das maldades de línguas e cabeças doentias e impiedosas, embora não fosse nenhum santo.
Para ele, nunca contei o que eu ouvira por toda a minha vida, tão pouco ficaram sabendo, nem ele e nem ninguém, que tais encontros não aconteciam de graça, mas cuidadosamente preparados por mim. A todos os que conheciam os fatos, parecia uma sorte ter ocorrido essa oportunidade de um reencontro Comentavam comigo e eu concordava com eles. Estava satisfeita, bastava o simples papo esclarecedor que de uma vez por todas deixava clara a vida do papai e suas atitudes. Ele recontava o fato, com detalhes e ninguém o desmentia.
Entendi, então, a sua paixão e fidelidade ao seu ideal.

Cobrei dele, uma única vez e uma única coisa: o fato dele ter tido filhos, se não nasceu com a vocação de se dedicar à família.
Sabe o que me respondeu o maroto?
- Os filhos vieram sempre sem que se esperasse. Acontecia.
Aí fui eu que quase subi pelas paredes!
Perguntei: papai, como? Então você não sabia que de uma relação sexual entre um homem e uma mulher, jovem e sadia como você, aconteceria certamente uma gravidez não desejada?
Ele sabia desviar do assunto e estava certo!
Agora, fazer o que? Já lá vão décadas!

Quando fugiu de Portugal para Espanha, ficou doente e precisou de uma enfermeira. Nem preciso contar o resto dessa história. Ela se apaixonou por ele e ato continuo, ficou grávida também. Que coincidência, não??? Desse terceiro descuido veio o terceiro filho. Nasceu José Carlos em Barcelona.

Esse para mim, foi seu grande erro.

Era um homem do mundo e nunca devia ter tido um só filho.