sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Muito de Mim – Parte IV –Final

Muito de Mim – Parte IV –Final

Já serão 36 anos, agora, neste dezembro vindouro, que tudo isto aconteceu na minha vida, porém ainda é bem viva em mim a lembrança do meu pai. Ele amava a vida intensamente, era inteligente, bem humorado, carinhoso, engraçado, sabia como esconder suas frustrações de forma bem diferente! Teve três filhos como já mencionei, eu fui a única mulher. Os dois filhos homens preciso dizer, que em matéria de posicionamento diante da vida e das outras pessoas, eram quase indiferentes. Cada um deles ao seu modo cuidou de si, de sua família e nada mais. Eram o oposto do papai.
Assim que lhe escrevi a primeira carta, tive o cuidado de lhe contar como meu irmão mais velho, o Zezinho, lutava para sustentar sua família. Era grande a batalha, porque tinha três meninas e um rapaz, todos com pouca diferença de idade. Esse filho do meu irmão, o Glauco, é o neto com quem o papai se encontrou no Rio de Janeiro e que o trouxe até a nossa casa. Nessa ausência do papai, só nós dois, os primeiros é que nos conhecíamos. O outro, o José Carlos, nascido em Barcelona e residente lá, chegava a ser uma dúvida para nós todos. Aqui, o papai nos contou sobre ele. Certo é que fomos três filhos únicos de nossas mães, a única presença que tivemos, suprindo a falta do pai, que tinha outros compromissos com a vida e com o mundo.
Muitas vezes me pergunto até onde éramos realmente importantes para ele. Seu ideal político tão arraigado em sua alma, fez com que vivesse dedicado às pessoas, como se fosse o salvador da humanidade. No entanto, aceitou viver sem seus filhos, a bem da verdade, sem o Zezinho e sem mim. Conviveu normalmente com o José Carlos. Outra pergunta que faço é se alguma vez ele parou um só momento com seus pensamentos voltados para dentro de si, mergulhado em sua própria vida e percebeu o dano irreparável que nos causou sua falta. Eu digo que tudo passou, já foi, paciência, mas a pergunta não se cala!
Perdemos para a política e ficou bem claro que para ele, ela foi tudo!
Na minha primeira carta, então, contei-lhe a situação difícil do Zezinho e ele, imediatamente enviou-lhe um cheque de US $ 1.000,00 para cobrir alguma necessidade mais premente, penso que com a intenção, agora, de ajudá-lo no futuro a sair daquela vida de contínuos apertos, como só poderia ser a de um humilde funcionário da prefeitura. Ele sabia que viria nos ver um dia, em breve e teria essa oportunidade.




De fato, chegou aqui era Natal, ficamos todos juntos. Meu irmão não pode vir passar conosco essa data, porque a despesa seria grande para vir com toda a família e não tinha mesmo onde se hospedar. O papai, por sua vez não fez mais que falar com suas irmãs, irmãos e cunhados por telefone e deixou o encontro com eles para depois das festas.
Eu agora, aos 40 anos, tinha meu pai ao meu lado, mas cheguei aí, sem nenhum preparo, nem maturidade política para conversar com ele. Precisaria ter perscrutado muito mais a sua alma, seu coração, seu intelecto, e tentado conseguir entender objetivamente o seu pensamento. Saber a
verdadeira política que ele aplicava em sua vida, e o que nela o prendia e o fascinava tanto. Saber mais da história que todos vivemos neste nosso Brasil e da qual ele foi uma sofrida personagem...
Tenho pena de não o ter explorado e entendido mais nesse sentido.
Meu interesse era inteiramente voltado para a pessoa dele. Interessava-me saber seu comportamento nesse passado quando esteve tão distante e ausente e mesmo do seu tempo de Brasil, antes de ir embora. Saber quem foi ele, como já mencionei acima.
Falávamos de tudo, mas quando o assunto era a política, o comunismo, a ditadura Vargas, como aconteceu uma vez, ele começou a me contar das torturas que sofrera no DOPS. Quando me contou das suas 20 unhas arrancadas em uma única sessão, uma a uma com alicate, não aguentei e sentimos que o clima causava, ainda, o mesmo terror, a mesma repulsa, agravado, pela ditadura que estávamos vivendo então. Evitamos depois levar nossos papos por aí. Eu ainda era muito fraca para esse enfrentamento.
Entre os endereços que trouxe de alguns companheiros, trouxe o de um daqui de São Paulo, na Avenida Rebouças. Ambos foram ao mesmo tempo, presidiários do Maria Zélia e isso os uniu para sempre.
A este, fez algumas visitas, sempre de noite, e levava com ele o Tarcísio, meu filho mais velho. No momento eu não aquilatava bem o perigo e os riscos que corriam. Por isso mesmo, nesses dias de visitar seu amigo, cheguei a manifestar minha vontade de ir com ele para conhecê-lo. Ele não me dizia que não, mas rodeava, justificava e afastava essa possibilidade, elegendo apenas a companhia do Tarcísio. Hoje penso que o escolhia, tentando fazer do neto, um deles. Tenho razão para suspeitar. Ele tentou comigo...
Eu tinha dois filhos adolescentes e um ainda com 9 anos, que me davam muito trabalho e com eles gastava bom tempo. Assim, dia após dia, a luta era interminável. Sempre havia muito que fazer, geralmente contra o relógio. O papai logo percebeu esse fato e comentou ter se surpreendido com a vida dura da mulher aqui no Brasil. No entanto, nem por isso, deixou de me encostar na parede, tentando me aliciar. Eu preparava o almoço, estava a todo o momento na pia e ele, com muito carinho, aproximou-se, passou seu braço em torno dos meus ombros e com sua voz calma, grave, tom solene, disse:
- ó filha, por que é que não te filias ao partido?
Eu diante daquela atitude pensava estar recebendo um carinho, apenas olhei-o, calada. Explicou: já fazes tanta coisa, tens tanto trabalho. No partido é que estarias bem. És talhada pra isso! Aí reagi. Papai, você não me peça tal coisa! Se todas as mães educassem seus filhos do mesmo modo como eduquei e educo os meus, o mundo seria outro e até esse seu partido seria inútil. Foi troca rápida de palavras, fiquei irritada e ele logo mudou de assunto. Esta foi a única vez que tentou levar-me a segui-lo na política, mas não deixou de fazê-lo. Ele nunca imaginou quanto eu a odiava e ao tal partido que o arrebatara de mim.

Ele veio para ficar por uns vinte, ou vinte e cinco dias, apenas. Sequer imaginava o que ia encontrar por aqui. Tantas mudanças neste Brasil que ele havia deixado. Tudo diferente. A nossa própria vida completamente diversa daquela que ele conheceu. Afinal, ele vinha nos visitar após uma longa ausência de trinta e cinco anos! Tínhamos vivido a era Juscelino que nos trouxe a nossa revolução industrial trazendo-nos com ela uma vida como ele jamais imaginou encontrar por aqui. Encantava-se com algumas coisas, outras detestava, mas o certo é que se deixou ficar, porque os apelos eram muitos e de todos. Claro, queriam tê-lo ao menos um pouquinho com eles.
Ausentou-se daqui por 5 dias, quando foi, então, visitar seu filho mais velho no interior. Essa visita que a todos causou expectativas, de fato veio a nos surpreender, mas ao contrário do que esperávamos.
Por lá, o papai apenas analisou atento ao seu redor e com meu irmão falou muito da política que vivíamos.
Quando retornou, perguntei como ele havia visto a situação do filho. A resposta, para mim, foi surpreendente!
– Teu irmão está muito bem.
Não entendi, sempre imaginei o contrário. Como papai?
Então ele contou como foram os dias que passaram juntos. Conversaram muito sobre tudo, inclusive sobre política, e tentou fazer com que o filho entendesse os males da revolução que vivíamos e ao que estávamos sendo submetidos pela força. Qual nada!
- Teu irmão está plenamente satisfeito com o regime e com seus reflexos em sua vida. Mansamente discordaram em tudo.
- Uma pessoa tão satisfeita com o mau governo que tem, não precisa de ajuda, pois nem quer avaliar o que seria sua vida em condições políticas diferentes. Tudo esta ótimo para ele! E pronto.
E está mesmo, pois com tudo isso, teu irmão conseguiu ter uma casa, não importa que a esteja fazendo aos poucos e modesta, como dá pra ser feita. Está tudo bem com ele. Encontrei-o um homem realizado. Não vou atrapalhar nada, interferindo na sua vida.
Surpresa, calei-me um pouco desapontada. Já tinha feito o que achei que me competia.
Muito interessante essa sua atitude e decisão, pautada nas suas convicções, em nada mais. E ressalte-se: válidas só para ele.
Nessa ocasião, nós morávamos em uma casa que meu marido havia comprado já havia dez anos. No final de 1973, estava prevista nossa mudança para o ano seguinte. Ìamos para um apartamento, ainda em construção, que ele também havia acabado de comprar. Agora eu acompanhava mais de perto o ritmo da obra, porque assim que houvesse possibilidade de elevador, queria levá-lo para conhecer nossa nova casa. Não foi possível subirmos, mas ele esteve por lá e viu tudo como seria.
Nesse ponto, achou que tendo eu o novo imóvel, poderia bem dar a casa para o meu irmão. Achei que me fez uma “proposta indecente”. Confesso que me assustei, mas pela grandeza do absurdo, achei melhor fazer de conta que ele estava brincando. E é verdade, quando me lembro disso, acredito mesmo que ele estivesse só me provocando, porque se o seu ideal o autorizava a não ajudar seu filho, porque eu, meia irmã, quase estranha, deveria presenteá-lo com o fruto do trabalho do meu marido?
José era sete anos mais velho que eu.
Foi muito difícil para minha mãe no início aceitá-lo, porque as circunstâncias em que ela tomou conhecimento da existência desse menino foram inusitadas. Alguém, no dia do seu casamento, ela vestida de noiva, contou-lhe que o noivo tinha um filho, então com essa idade. Fácil imaginar o choque que ela tomou.


Foi devagar, mas ela superou o fato, tanto que mais tarde, quando das visitas ao presídio, por ser permitida apenas a entrada da esposa acompanhada de um filho, um só, ela levava aos domingos um de nós e nas quintas feiras o outro. Minha avó paterna ia com ele e esperava minha mãe na porta do presídio, onde ela recebia o menino na chegada e ali mesmo o devolvia na saída para a avó que era chamada “a vovó do bosque”, porque morava no Bosque da Saúde.
Nosso convívio começou em 1948. Foi ele quem me procurou. Sabia que tinha uma irmã e que minha mãe era casada com o nosso pai no civil e no religioso. Diante disso, desconfiou sempre, que o papai o havia registrado, mas tinha certeza que não lhe dera seu nome verdadeiro. Sua primeira providencia foi buscar nos cartórios a minha certidão de nascimento. Encontrou-a e lá estava a prova da sua suspeita. Ele era José Affonso, o pai Cypriano Affonso. A irmã não, Aida Vera Cruz, filha de Cypriano da Cruz.
Judiação! Só ele e eu sabemos o que ele sentiu naquela hora! O sentimento é de rejeição, de engodo, de pouco caso. De traição mesmo. Nenhum filho merece uma dessas. Tudo bem, ele foi criado ao Deus dará e assim soube sempre se defender. Pôs-se a imaginar como sair dessa situação, sem documentos do pai, sem nada, nenhum subsidio que lhe facilitasse o objetivo. Era o momento de servir ao exercito e aí ele viu uma possibilidade. Inscrever-se como José da Cruz Affonso. Fez isso e deu certo. Tão simples! Viva o Brasil!!! José Cruz, foi o nome como ficou conhecido na cidade e seu nome até o fim da vida.
Já estava com 23 anos quando me encontrou. Desde que perdeu sua mãe e foi abandonado também pela família paterna, antes mesmo dos 18 anos, começou a me procurar. Soube o colégio onde eu era interna, no interior, mudou-se para lá, era locutor da rádio local e se apresentava apenas como José Cruz. Minha mãe, todas as vezes que o ouvia, dizia: Aidinha, é teu irmão. Eu ficava apreensiva, curiosa, mas pensava que poderia ser só uma coincidência. Depois a confirmação. O que parecia sempre uma brincadeira era verdade mesmo.
Um dia ele se encheu de coragem e foi ao colégio me visitar. Nem preciso dizer o problema que me causou diante das freiras que sabiam que eu era filha única. A Madre deixou-o esperando por bom tempo, enquanto me fazia um interrogatório para saber a verdade. Concluiu a favor dele e acreditou ser mesmo meu irmão. Também, naquele impasse, contei tudo o que eu sabia tentando convencê-la da verdade.
Esse foi um encontro difícil para nós dois. Ele, comigo só queria discutir religião. Era Batista desde que nasceu. Eu, Católica desde sempre. O
resultado disso é que muitas vezes evitei sua companhia, tentando evitar assim um possível desentendimento.
Eu tentava tornar tudo mais ameno entre nós, mas a vida para ele foi madrasta e muitos fatos o marcaram para sempre, como por exemplo, a questão do nome. Nesse momento ele era um adolescente só no mundo. Não contava com o apoio de ninguém.
Demorou um pouco para me contar sobre esse episódio, mas quando se sentiu mais seguro a meu respeito, contou-me como se tivesse conseguido uma vitória contra tudo e contra todos. Conversávamos e ele muito feliz com o resultado da falcatrua que fizera no exercito. Nessas alturas, eu comecei a rir, rir muito e ele imaginou que a graça que eu achava, estava exatamente nessa volta que ele conseguiu dar no comando dos melicos. Filiação garantida, riu também e me perguntou: - não foi bem feita essa?
- Não meu irmão, não foi. Respondi.
O que você não sabe é que o papai casou-se com minha mãe com um nome suposto. Eu é que não tenho o nome dele!... Foi um momento de tanto impasse que nem sei descrever. Eu rindo, ele chocado. Não sei o que pensou, nunca mais tocamos no assunto para valer, eu é que de vez em quando tirava dele um sarro por causa dessa história. - Está vendo? Quer ter tudo igual a mim, olha aí, arranjou um nome falso!
Essa foi uma questão que discuti com meu pai na primeira oportunidade que tive e disse-lhe de chofre – como papai, o senhor teve coragem de não me dar seu nome? Ele tranquilo como sempre explicou: - não filha quem te disse isso? Cruz é o meu nome “também”.
Em meu coração não aceitei bem essa resposta. Não quis aprofundar o assunto, mas também nunca lhe contei que quando do meu casamento, fiz a mesma trapalhada (lícita, porém!), como meu irmão e tirei o “Cruz” que me pesava na alma.
O tempo me trouxe o esclarecimento e achei graça, outra vez. Consegui a certidão de batismo dele e me parece que lá, na época tinha o mesmo valor que a de nascimento. “Affonso” vem de meu avô mesmo, é o verdadeiro nome de família que o papai deu ao Zezinho, mas na hora do batismo, os padres sempre sugerem e carregam um nome de santo, ou por aí, para que o neo batizando sai da Igreja bem protegido. Ao meu pai deram “Cruz”, a própria cruz do Senhor como nome. Portanto, eu não poderia telo como sobrenome, mas naquela ocasião, meu pai já andava comprometido com a polícia do Getúlio e tudo valia para despistar sua presença aqui. Compreendi muito tarde essa atitude dele. Ele me garantiu que era o nome dele e era mesmo! Nome de família é que não era.
Eu costumava dizer - sou filha de ninguém, não tenho nome. Por isso foi fácil para mim entender o que sentiu o meu irmão.
Nessa mesma certidão de batismo do papai, consta num acento à margem que ele e a Carmen, mãe do meu irmão caçula José Carlos, casaram-se. Portanto, nesse momento, ele era também bígamo!
Enfim, chegou o dia de irmos para Vila Velha.
Dessa viagem, já relatei as peripécias minhas e de José Rebelo!
Meu pai, sozinho comigo, nunca falou uma só palavra contra minha mãe, ou contra quem quer que seja da família, ou dos amigos. Naquele momento, no meu modo de ver, tinha razões para isso, mas era uma pessoa com grande capacidade de perdoar.
Quando estive a primeira vez na casa de minha tia Silvana, me deparei com uma pessoa amarga e rancorosa. Exatamente oposta ao irmão. Parecia que toda odisséia vivida por ele, tinha sido também vivida por ela. Verdade que teve como companheiro um do partido, como não poderia deixar de ser, amigo íntimo do meu pai. Estiveram presos juntos no Maria Zélia. Era Krebs o seu nome e meu pai e ele, usavam aquela barba, marca característica dos comunistas, revolucionários. A do papai era muito bonita, chegava mesmo a ser de um preto azulado o que lhe rendeu um apelido. Eu, pequena, era muito esperta, ativa, nada me escapava. Meu pai, moreno (lindo!), lá era chamado de “Barba Azul”. O Krebs era ruivo e eu prontamente o chamei de “Barba Vermelha. Ficaram, então, lá dentro, sendo assim chamados, o Barba Azul e o Barba Vermelha.


Minha tia e minha avó, jamais permitiram que uma carta da mamãe para o meu pai, ou vice e versa, não fosse encaminha através delas. Minha mãe nunca soube o endereço do marido e ele não sabia o dela. Tudo sob o crivo das duas que se faziam senhoras absolutas da situação. Por isso o Zezinho, pela vida, se perdeu do papai!
Minha tia, contou-me então, que tudo o que meu pai sofreu e sofria, ainda, era por conta de ter sido delatado por minha mãe.


Isso me incomodou a ponto de nem conseguir dormir. Andava sem entender mais nada, porque eu sabia que minha mãe era apaixonada por ele.
Como ter certeza? Não tinha jeito. Dar crédito à minha tia? Por outro lado, não era totalmente impossível que isso fosse verdade, pelo que eu conhecia das nossas vidas. O reflexo da vida dele na nossa, era um verdadeiro desastre. Chegava ao ponto de minha mãe perder diversos empregos, quando descobriam que o marido era comunista e estava preso. A fome pintou, mas amigos também não faltaram para minimizar isso e minha avó materna, sempre conosco, trabalhava duro ao lado da mamãe, para juntas vencerem esse pedaço doloroso da nossa vida. Trabalhava muito, madrugadas a fio e muitas vezes o dinheiro não vinha. Eu tinha apenas quatro meses e meio, minha mãe, não tinha leite, nem dinheiro para comprá-lo todos os dias. Então a vovó levava batata para os meninos da padaria, que ficava do outro lado do muro da nossa casa e pedia para eles assarem nas brasas. Depois, amassada com um fio de azeite, dava para mim. Sou “batateira” até hoje! Era assim que me alimentavam.
A magreza da mamãe impressionava e o médico descobriu que estava com uma degeneração óssea por falta de alimentação e tanto trabalho na posição forçada que aos poucos lhe deformava o corpo.
Minha mãe retirava o serviço todas as segundas feiras na Rua Oriente, na Casa Lenci e entregava-o nas sextas feiras. Eram dois jogos de cama, de casal por semana, inteiramente bordados à máquina, na Singer simples. Ele não deixava que ela, ou a vovó fossem entregar o serviço. Ia ele e o dinheiro, jamais chegava às mãos dela. E ela não podia e nem se atrevia a enfrentá-lo para reenvindicar- lhe o dinheiro. Morria de medo dele.

Eu não queria falar com a mamãe sobre esse fato tão sério, porque tudo o que eu fiz para chegar ao meu pai a para ele chegar aqui, fazia escondido dela, em virtude dessa acusação feita pela tia Silvana. Na dúvida, eu tinha medo...
Quando ele me prometeu vir ao Brasil, achei que era hora de falar com ela, seriamente! Em sendo tudo verdade e se ela agora se sentisse ameaçada com sua presença, correria ele o risco da nossa ditadura o apanhar e o de ela própria entregá-lo outra vez. Fiquei apavorada. Decidi num domingo, quando ela vinha nos visitar: - vou falar!
Enquanto eu fazia o almoço, ela sentadinha ali a ver-me cozinhar, nunca esperava ouvir de mim tudo que lhe falei.
Abri o jogo, sem nenhum prólogo.
- Achei meu pai.
Ela não esperava, levou um susto.
- Como? O que disseste Aidinha?
- Disse que encontrei meu pai. Já o procuro há algum tempo.
Daí por diante falei-lhe tudo o que guardava no coração e queria sair pela boca!
Falei que nos correspondíamos e que ela jamais saberia, por mim, onde ele estava. Respondia sempre me acalmando e dizendo que sim a tudo o que eu propunha e programava.
Por fim disse-lhe: - durante quarenta anos estive com a senhora. Depois que me casei, minha casa esteve aberta para a senhora sempre. Agora, meu pai vem no fim do ano nos visitar, fica apenas uns dias e eu não sei como ele vem, nem por onde. Enquanto ele estiver aqui, a senhora, por favor, não apareça e digo mais: ele pisando no Brasil, a senhora reze para que nada de mal lhe aconteça, porque se isso acontecer, nem vou apurar nada, eu mato a senhora!

Acredite mamãe e não faça nenhuma insanidade!

Ela ficou assustadíssima, disse não me entender e não ter nenhum interesse em prejudicá-lo, ou a mim. Que eu ficasse tranquila. Já falava meio ardida, enciumada talvez!
Com a notícia, naquele domingo tudo foi diferente. Ela se manteve um pouco mais quieta que de costume.
Pois bem. Ninguém acredita. Passadas as festas de Natal, ele me perguntou: - e a tua mãe? Por que não aparece? Expliquei-lhe como eu a tinha afastado “cautelarmente” e porque. Ele meigo: filha, não é nada disso. Ninguém pode falar nada. A situação naquela altura foi muito difícil para todos nós e as reações todas de cada um, têm sua explicação. Diz-me uma coisa, ela tem telefone? Ao lhe responder afirmativamente, levantou-se, pediu-me o número e anunciou: vou já ligar para a minha mulher. Intimou-a a comparecer o mais depressa possível, desde que naquele mesmo dia. Ela veio. Simples assim...

Dentro de mim naquele instante, foi como se o temporal tivesse amainado. Foi muito engraçado, porque eu fiz um carnaval e agora para os dois era festa. E o que me restava fazer? Desanuviada a nossa relação, pela atitude dele, tudo ficou como antes. Ele zangado achou que a irmã, a tia Silvana, melhor teria feito se ficasse calada. Jamais deveria me falar tal coisa.
Minha tia, ainda agora jogava sujo, pensei. Porém era muito bom saber que ela não disse a verdade.

Enquanto ele esteve no Brasil e em minha casa, não dispensava a presença da mulher dele, por nada, ficavam os dois sentados no sofá, de mãos dadas, conversando baixinho e piriquitando à vontade. Era engraçado e bom de se ver.

Tantas peripécias, nomes trocados, documentos literalmente comidos por ele durante o trajeto até o DOPS, tanto medo, tanta ameaça e por fim ele acabou preso mesmo. Eu era muito pequena, tinha menos de dois anos e dormia no berço no quarto deles, quando o prenderam para averiguação.
Cercaram todo o quarteirão. A chegada da policia, da forma como foi, acordou toda a vizinhança. Eu acordei também e assisti aquele horror. Gritos da polícia para que ele se entregasse, tiros e tudo o que fazia parte da ação. Ele andando pela casa, armado, minha mãe desesperada, a vovó no meio daquilo tudo e ninguém se deu conta que eu estava de pé no berço, olhos arregalados, observando tudo. Por fim, entregou-se. Quando o levaram, minha mãe se lembrou de mim, a casa já trancada, o medo ainda em nós, ela tirou-me do berço, contou-me que meu coração parecia um trem sem freios. Apenas perguntei quando o papai voltava. Ela me tranquilizou e adormeci. No dia seguinte, fomos na casa da minha madrinha, minha mãe queria contar-lhe o que acontecera e longe de mim comentou que estava com muito medo, porque quando as pessoas perguntassem na minha frente,
por que ele havia sido preso, ela não imaginava o que eu poderia responder. Pensava que eu fosse logo dar com a língua nos dentes, falar de tiros de comunismo e lá ia de embrulho o seu emprego e o nosso ganha pão. Minha madrinha velha foi mais prática. Foi conferir. Foram ao quintal, onde eu brincava e minha madrinha me fez a temida pergunta: - Aidinha, porque o papai foi preso? Prontamente respondi:
- Porque ele dormiu de cuecas.
Eu nunca o tinha visto antes, em trajes menores.
Minha mãe respirou aliviada. Ficou tudo bem.
Eu sempre estava no meio da encrenca para ajudar, ou atrapalhar.

Fomos no começo de 1934 morar em Lins. Lá estavam os primos da mamãe, o José Maria Terrível e o Manuel Terrível. Depois, aos 03 de dezembro de 1935, seis dias após a Intentona Comunista, o papai foi preso e de lá veio escoltado para São Paulo, diretamente para o Gabinete de Investigações e de lá para o Maria Zélia. Esteve preso, sempre em condições de preso político, também no Presídio Paraíso, às vezes ia para o Gabinete de Investigações, ou para o DOPSS e por fim, antes de sua extradição foi para a Cadeia Pública na Avenida Tiradentes. A luta da família dele aqui fora era para encontrar quem o libertasse. Assim, minha tia Silvana, veio a nossa casa e combinou com a mamãe que iríamos aos escritórios de uma pessoa muito influente, com força suficiente para atender esse nosso pedido. Conversaram e ela disse à mamãe que era bom que me levassem, para reforçar diante da tal autoridade que se tratava de uma pessoa responsável, trabalhador, pai de família por quem elas estavam ali intercedendo.
No dia combinado fomos. A mamãe sempre me vestiu com muito capricho, fazia para mim os vestidos mais lindos! Eu era bem magrinha, comprida. Sempre me comprou os sapatinhos “Andar Certo”, finos que eu usava com as meias de seda, soquete, cor da pele, e as infalíveis luvas brancas com as quais, ao seu menor cochilo, eu polia o banco dos bondes a minha frente, escorregando com as mãos contornando o seu encosto.


Toda arrumadinha, fomos. O gabinete desse senhor era muito luxuoso e eu sentada, comportadíssima, sentindo a solenidade do momento, apenas apreciava tudo à minha volta. Na hora em que ele entrou na sala, eu olhava curiosa, pescoço curvado para trás, os arremates do teto em barras de gesso largas, douradas que compunham com muito bom gosto o ambiente.
Ele foi logo dirigindo-se a mim e me cumprimentado jovialmente.
Que menina bonita! Você está gostando da minha casa?
Naturalmente respondi: - estou sim, e tão linda! Ele me pergunta: - e a sua também não é assim? Eu ri marota e disse-lhe: - não senhor. O teto da minha casa não é de ouro, é o soalho da D. Rosalina. Morávamos num porão habitável. Ele desconcertado, sem esperar uma resposta que tomou a todos de surpresa, deu logo continuidade ao encontro, mas a todo o momento dirigia-se a mim com muito carinho. Com tudo isso e muitas vezes muito mais, nada abriu as portas do presídio para o papai.
Meu pai, ao retornar ao Brasil, pensou encontrar no Zezinho um filho politizado, ativo, engajado, alguém como ele foi e ainda era. Seu caçula não queria nada e aqui, constatou que o primogênito também era descompromissado com qualquer questão política. Em mim, enfim, ele conseguiu enxergar a garra, a solidariedade, o pensamento rápido, a combatividade. Todas as vezes que vinha pra cima de mim com seu discurso político, eu o contestava e não permitia que ele se dissesse o dono da verdade. Ninguém ousava contrariá-lo, mas eu sim. Uma vez (isto foi em Vila Velha), acusando-me e a nós daqui decretou: “vocês são todos uns burgueses de m.....”. Por que ele disse isso? Eu o calei. Ele muito serio olhando até assustado para mim, saiu pisando duro parecia estar muito bravo. Só que o pessoal todo da casa, depois veio me contar que quando ele se levantou e foi lá pra dentro saindo de perto de mim, foi rir à beça! Até comentou como era bom desacatar a sua filha e vê-la reagir. Achou melhor parar por ali, porque eu tinha razão de rebater o que ele dizia, mas ele nunca esperava que eu reagisse daquele jeito, no entanto era isso que ele esperava dos filhos homens e não teve.
Ele gostaria muito e esperava que eu nascesse homem também. Ele dizia a minha mãe que seria um menino e ia se chamar Vladmir Lenin. Nem preciso dizer qual não foi o alivio que ela teve ao saber que eu era uma menina!
Apesar de tudo, tenho pena de nunca ter conseguido partilhar com ele esse ideal, apenas por amá-lo tanto. Ele esteve nesse barco sempre só com relação à família. Só fico feliz a esse respeito, porque a mamãe sempre contava que nunca morreu do coração na saída das visitas que fazia a ele no presídio comigo, nem sabia por que. Quando se aproximava a hora da despedida, ele muitas vezes, nas costas do sentinela, pegava um calhamaço de papeis e enfiava dentro da minha calçinha, presos no elástico da cintura e eu saia toda empavonada, olhando para os guardas. Minha mãe suava frio, ficava pálida, tremia como uma vara verde! Pobre coitada! Não era para menos. O pavor que alguém nos pegasse. Nunca aconteceu, graças a Deus. Então por esse motivo, eu tenho um prazer enorme de saber que trabalhava para o partido e para ele. Depois não sei que destino tomavam esses manuscritos, mas sem dúvida, chegavam aonde ele havia determinado.
No dia 24 de dezembro de 1973, ao brindarmos, ele com sua taça erguida prometeu que em 1975, teríamos outra vez um Natal todos juntos. Ele voltaria.
Sua vinda até a hora de ele ir embora, me pareceu sempre um sonho e eu tinha medo de acordar. Enquanto ele esteve aqui, convivemos, na minha opinião, como deveria ser. Me rendi a ele totalmente, soube amá-lo, respeitá-lo, briguei com ele quando achei que era preciso, dei-lhe o meu carinho e a minha atenção sem medidas. Vivemos esses dias como se tivéssemos vivido sem nunca ter havido entre nós a separação e como se esse convívio fosse perdurar, ainda, longos anos.
Ele decidiu sua partida para o dia 24 de abril de 1974. Fomos todos, uma turma grande ao Aeroporto e seu embarque foi do modo como conhecemos. Quando veio o ônibus pegar os passageiros, ele ainda se enroscava recebendo mais um beijo e mais um. Entrou no ônibus, foi o último passageiro. Sua imagem se congelou na minha memória. Uma mínima maleta de mão, um sobretudo dobrado no braço para desembarcar e enfrentar o frio que fazia em Barcelona, acenando par nós até desaparecer do alcance de nossas vistas. Foi embora e de manhã chegou a Barcelona onde o esperava a sua outra mulher, mãe do José Carlos. Primeira notícia no aeroporto: ACONTECEU A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS EM PORTUGAL. SALAZAR FOI DEPOSTO.
Este homem ficou louco! Durante uma semana falou dia e noite com Portugal, com os amigos que deixara há tantos anos. Nesse ponto a Carmen achou que era melhor ele não voltar para a África sem ir a Portugal. Ele não rejeitou a idéia e foi para lá, onde ficou mais uma semana. Eram reuniões, encontros dia e noite, entrevistas para rádios e TV´s, tudo que ele nunca esperava acontecer na sua vida. Foi para Monróvia e lá imediatamente começou a escrever outro livro.
Ele recebeu carta minha poucos dias depois de estar na Monróvia, mas demorou a responder. Ao chegar sua carta as minhas mãos, porém, não reconheci nela o pai que a pouco havia partido.
Era apenas um guerreiro.
Já estavam em segundo plano, esmaecidas como antes do nosso reencontro, as lembranças que levara de nós todos. Esqueceu-se de tudo num instante, para daí em diante, respirar e viver outra vez, apenas a política. Só ela dominava sua mente e seus atos. Encantava-o seu Portugal livre de Salazar para sempre. Queria falar, pregar, convencer e agora podia fazer isso!
Enfim, era um homem livre.
Penso que para o Brasil, e para bem poucos países, permaneciam restrições que impedissem sua entrada. O resto do mundo lhe pertencia.
A 20 de junho, no entanto, nem dois meses depois de nos deixar, seu coração não resistiu a tanta felicidade e tanta alegria que parou de bater.